Sentada na mesa de conferências, o seu frágil aspecto e a sua postura simples, iluminada pelos projectores e ladeada por homens de porte médio/alto, diminuíam-lhe ainda mais a figura, colocando-a numa situação de quase não presença, ou na figura honorífica da cerimónia.
Refiro-me a Manuela Azevedo, primeira mulher, em Portugal, a ter carteira profissional de jornalista, mentora e coordenadora da colectânea, em apresentação, “Cartas de Manuel Teixeira Gomes a João de Barros”. Figura de estatura miúda, pequena e magra, de cabelo ralo, grisalho e ligeiramente despenteado, olhos pequenos mas vivos, movendo-se com a dificuldade própria dos seus 98 anos.
- Coitada da senhora com esta idade, vai certamente apresentar agradecimentos e termina a sessão.
Começa a falar e preenchendo a sala com a sua voz nítida e teatral, logo cativa toda a assistência, faz ecoar nos nossos pressupostos cada palavra do seu claro discurso. De improviso, sem papéis ou notas de apoio, socorrendo-se da sua espantosa capacidade, cita de memória factos, datas, nomes, conta histórias, cambia o discurso entre o académico e o bem-humorado, interrompendo-o diversas vezes com apropriados parêntesis, findos os quais volta, sem dificuldade, ao ponto exacto onde tinha ficado. Um encanto, uma delícia de mulher. Não lhe olhem à figura.
Eis quando senão, num parêntesis, faz referência à revista Vida Mundial (onde chefiou a redacção), e faz-se flash na minha cabeça e perco-me no abrir da janela que, transpondo-a, coloca-me de volta à Pastelaria Paraíso.
Deliciosamente estou sentado na mesa do costume, com meu irmão João, comprador assíduo da Vida Mundial, e retomo as nossas conversas opinativas sobre os assuntos lá publicados: Guerra do Vietname, o congresso de Aveiro do Centro Democrático Eleitoral (CDE), a vigília da Igreja do Rato, a ala liberal da União Nacional, os discursos na Assembleia Nacional, a criação da CEE, os números da OCDE, o Watergate, …
A grande sala da Pastelaria Paraíso está igual ao que sempre foi.
Mosaico a imitar pedra no chão, duas filas paralelas e centrais de mesas com quatro cadeiras, dispostas de forma enviesada, ladeadas por outras duas filas de mesas com duas cadeiras, encostadas ao longo das paredes, estas forradas com lambril de pedra, encimado por uma banda de espelho (mais ou menos com cinquenta centímetros), que as percorria totalmente, só interrompida pelos vãos geminados das portas de acesso aos sanitários e pela separação da área do balcão feita pelas vitrinas dos doces.
Na parede mais longa, a nascente, lá está o alto-relevo que a Lena tanto recorda.
A Paraíso foi o meu sítio de estudo.
- Sr. Prezado, era um carioca, se faz favor (hoje o Sr. Júlio deve estar de folga).
“Trago a fisga no bolso de trás e na pasta o caderno dos deveres, diga lá, Mestre-escola, se for capaz, qual dos dois é o melhor saber”.
- E se fossemos jogar ‘matrecos’.
Palavras mágicas que transformam conversas e estudo num intervalo gostoso, e num ápice lá estamos nós na cave suja e mal iluminada da Cervejaria Max (na Grão Vasco), perante aqueles belos campos verdes repletos de bonecos, todos com a mesma cara patusca e esfolada, equipados com ‘fatos’ do Benfica e do Sporting, rigorosamente alinhados de pés juntos: três avançados, cinco médios, dois defesas e um guarda-redes. Não lhes olhem à figura, pois estão prontos para mais um momento de forte libertação de adrenalina. Bola em jogo, roda o punho, passa, atrasa, finta, remata e:
- GOOOOOOOLO!
E todos de pé fazem ecoar pela sala as palmas, agradecendo o belo e delicioso momento que Manuel Azevedo nos permitiu viver.
Igualmente bato palmas a Alejandro Campos Ramirez - "Finisterre"
Texto de Miguel Gil
Texto de Miguel Gil
4 comentários:
Belas recordações....e parece-me que fizemos o mesmo percurso....ao mesmo tempo (estudos no Paraíso e matraquilhos na Grão Vasco).
Portanto o Sr. Júlio era o empregado "súper porreiro", que de vez em quando entrava de bandeja e imperial nos lavabos....e saía de bandeja e copo vazio. O outro mais pequenino devia ser o Sr. Prezado, que nunca me recordo de ter visto a sorrir. E continuo na esperança de algum dia encontrar uma foto dos interiores deste Paraíso.
Sim, o Júlio é mesmo esse que entrava, nos sanitários com a imperial na bandeja, bebia e saía.
O meu irmão e eu eramos conhecidos por conseguirmos sempre ganhar nos matraquilhos.
Um dia entraram uns ciganos pela Paraíso a dentro à nossa procura. Queriam (e conseguiram) que nós fomos recuperar o dinheiro que estavam a perder aos matrecos no Max. Espero que não fosse tu um dos adversários.
Haha....nunca joguei a dinheiro... mas adorava trocar as tintas aos adversários com os três avançados. Os matraquilhos eram um "desporto" absorvente !!!!
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