03/10/10

" O Estádio "


O antigo estádio da Luz foi um local importante na geografia da minha infância, pois morava muito perto dele, num largo à estrada de benfica. Com os tempos, aprendi a "ler" os sons que vinham do estádio, como se fosse um índio a decifrar sinais de fumo na pradaria; a imagem não é completamente fílmica porque entre a minha casa e o estádio existiam quintas dedicadas à agricultura e lacticínios, campos de trigo e vacarias, ligadas por azinhagas empedradas, e que prolongavam a antiga Rua dos Soeiros, da estrada de Benfica à estrada da Luz . Mesmo que não tivesse ido à bola, perscrutava os sons desde o meu largo e interpretava-os, sabia se tinha sido golo do Benfica, qual o nível do entusiasmo das exibições e das vitórias, a irritação protestativa do público quando as coisas não corriam bem ou o silêncio barulhento dos maus resultados, os golos dos adversários nos jogos importantes. Comecei a aprender muito cedo, a primeira vez que fui ao estádio da luz em dia de jogo , tive medo, era muito pequeno, assustei-me com os gritos do público, os pés das pessoas contra o cimento das bancadas do terceiro anel, as manifestações efusivas aquando da marcação dos golos, talvez os protestos contra as decisões do árbitro e o bruáá desesperado quando a bola não entrava.
Hoje quando vou à bola no novo Estádio da Luz , já não vou pelas azinhagas de que restam apenas vestígios e já não passo pelas poucas quintas que sobrevivem mas se olhar com atenção para a direita na entrada dos Altos dos Moinhos do novo estádio sei exactamente onde se erguia o antigo Estádio da Luz.
Se "olhar com atenção", o meu avô ainda lá está a meu lado nos lugares cativos por baixo do 3º anel, nos dias e noites de jogos grandes, os vizinhos da bola a apertarem-se na bancada para o puto se puder sentar, o avô a dar joelhadas reflexas no neto, querendo muito chegar àquela bola, em movimentos inscritos no corpo de futebolista da década de trinta, enquanto mastigo rebuçados, é prá tosse otimel, é prá tosse , e o vizinho da fila de baixo à esquerda, o da voz rouca, desenrola o farnel ,
tínhamos que ir mais cedo nos jogos grandes, mesmo os sócios com lugar cativo como o meu pai e o meu avô, o estádio com sessenta mil pessoas esgotado,
farnel a sério com garrafão de 5 litros, o vizinho da voz rouca a oferecer do farnel, e a sorrir, enquanto o jogo não começava, e eu a pensar agora, que nunca lhe ofereci um rebuçado para a tosse,
nos jogos europeus a emoção era muita, era o somatório dos resultados de dois jogos, tínhamos estado em vantagem e agora já não, mas veio o terceiro golo e foi a alegria total, tudo a abraçar-se, mas o vizinho da fila de baixo à esquerda deitado com a comoção,
façam-lhe respiração boca a boca,
felizmente foi passageiro,
deixe lá o farnel e o garrafão de 5 litros,
o jogo a continuar e logo a seguir o Benfica faz 4-1 e depois a marcar o quinto, o delírio total,o vizinho ainda não estava bem recuperado, voltou a vacilar, mas nenhuma sombra passou pelo estádio…
Se fechar os olhos e me concentrar, acho que ainda posso ver o que via quando,
depois de uma soalheira tarde de bola na Luz , descendo a rua dos Soeiros com meu pai até à estrada de benfica,
fechava os olhos , ainda com as retinas impregnadas do verde do campo , das camisolas berrantes e de luz intensa e clara.

12 comentários:

Carlos Caria disse...

Estar no velho estádio da Luz faz sonhar qualquer criança, mesmo que sejam 60 mil.
Abraço pelas deliciosas memórias.
Carlos Caria

T disse...

Belo texto:) Parabéns:)

Miguel Gil disse...

Bolas! Boa Xávi, belo texto! Senti mesmo o entusiasmo de assistir, bem acompanhado pelos nossos familiares próximos, a um jogo vitorioso do Benfica no antigo Estádio da Luz.
Hoje o conforto é outro e somos nós a levar os putos à bola! Agora neste outro papel e no novo estádio, já senti igualmente na pele o arrepio de vibrar com os golos do nosso Benfica.

J. disse...

xavi,

foi um dos textos sobre o estadio da luz que mais gosei de ler :)

hoje ainda se ouvem os gritos, mas talvez não sejam tão nitidos, porque os tempos são outros e acredito que ja não haja o mesmo silêncio entre o estadio e a estrada de benfica... mas em dias de jogo ha carros estacionados de qualquer forma ca em baixo na estrada de benfica... gostava de saber se ainda ha quem leve farnel e garrafões de vinho de 5l para o estadio ;)

Xávi disse...

Carlos
fico muito satisfeito por ter gostado destas memórias e é mesmo isso que diz , estadio como "teatro dos sonhos" tal como os adeptos do Manchester United chamam ao Old Trafford.

T
Obrigado também e fico muito satisfeito por ter gostado do texto.

Miguel
Obrigado pelas sua palavras e por me ter relembrado deste outro conforto actual que também tenho tido a sorte de experimentar!

"Vizinha" J
Obrigado pelas amáveis palavras sobre o texto e por me dar oportunidade de saber que existem outros,e de outra geração, que se ligam aos sítios e às pessoas, nos territórios de convivência... Não sei se lhe acontece também a si algum sentimento de estranheza quando ouve dizer a alguém que é de Lisboa e não tem terra...
Não tenho tido oportunidade de ver recentemente garrafões de 5 litros no novo estádio, normalmente escondo o guarda chuva automático na revista da entrada para não apanhar uma "molha" à saída da bola...

Cristina Basílio disse...

Gostei muito de viajar consigo ao passado. Creio que sou Benfiquista por, tal como o Xávi, ter aprendido a conhecer as emoções pela explosão das emoções ou pelo silêncio nas bancadas. A alegria vibrante que rasgava o ar desde lá de cima até cá baixo, à estrada, ainda se continua a sentir, mas os tempos são outros e parece-me com menos genuinidade. Os farnéis são vendidos cá fora e os garrafões não conseguem passar pela segurança. Ainda assim, mesmo não gostando especialmente de "bola" ( perdoem-me a sinceridade) também consigo "ver" o antigo estádio, com e sem 3º anel, as luzes a encadear a noite e muita gente a subir pela Rua dos Soeiros acima para chegar a tempo da partida.
E porque gostei verdadeiramente do seu texto peço-lhe autorização para partilhá-lo com os meus alunos mais gaiatos. Estamos a trabalhar as "memórias" e tenho a certeza que vou ver em alguns deles " um certo brilhozinho nos olhos".

Bem haja!

Xávi disse...

Cristina

Obrigado pelas suas amáveis palavras e por se interessar pelo texto;tenho todo o gosto que o partilhe e o utilize com os seus alunos como achar mais conveniente.
Aproveito para lhe dizer que muito recentemente descobri no blog "Retalhos de Bem-Fica" dois posts sobre as azinhagas de benfica e os caminhos entre as antigas quintas que se já não conhece decerto a interessará.

Unknown disse...

Obrigado pelo fantástico texto. Ainda fico arrepiado só de imaginar quando lá em cima do 3º anel (eu ficava cá no 1º anel), o pessoal começava a bater com os pés no cimento e o impacto que aquilo provocava. Grandes recordações de tardes e noites nesse estádio. Abraço. Valdemar Alves.

Fausto disse...

O texto está excelente.
Aproveito para umas achegas:
O espaço onde foi edificado o Estádio da Luz, fazia parte da Quinta de Montalegre onde, eu e os meus irmãos nascemos. Da Rua dos Soeiros, resta um pequeno troço compreendido entre a Estrada da Luz até ao cimo da rampa onde existia, com o nº193, um dos portões da enorme quinta que possuía mais duas entradas: Azinhaga da Fonte,22, Estrada da Luz,203.
Ao cima da rampa do que resta da Rua dos Soeiros, a via toma outro nome: Rua João Hogan e que se prolonga até à antiga Azinhaga do Ramalho (ainda existe um bom pedaço até à Quinta do Furão) e depois termina num matagal.
Do lado de Benfica, onde tinha o seu início, a antiga Rua dos Soeiros, mudou de nome: Rua Cidade de Rabat.
Para se fazer uma pequena ideia da enormidade da Quinta de Montalegre, esta possuía cerca de 2.000 pés de oliveira, uma mina de água que alimentava a cascata monumental junto à Azinhaga da Fonte, poços, horta, uma barreira donde se extraía barro para as olarias próximas (e eram várias), enormes extensões de terras de trigo, vacaria, etc. Muito mais haveria que dizer. Fica por aqui.

Um abraço

Fausto Castelhano

Xávi disse...

Fausto Castelhano

Fico contente por ter gostado do texto, até porque contribuíu para que eu o fizesse da maneira como o fiz. Passo a explicar. Antes de o escrever procurei na net o tema Azinhagas de Benfica e apareceu-me em @ Retalhos de Benfica a sua completa e rigorosa reportagem sobre as azinhagas, nomeadamente a que eu conheci na minha infância. Há tempos que tentava resgatar na minha memória o nome do trecho de azinhaga que eu percorria vindo da Estrada de benfica e da Rua dos Soeiros, e que depois de passar o entroncamento com a azinhaga do Ramalho, nos levava à esquerda para os acessos ao antigo Estádio da Luz.Chamava-lhe eu nesse tempo, azinhaga da fonte? É possível...!
Fiquei também a saber com o seu texto pormenores sobre A Quinta da Nossa Senhora da Conceição que está nas traseiras da casa dos meus pais no Largo Conde de Bonfim e para o meu total espanto acedi a uma hiperligação com uma foto do próprio Conde de Bonfim, tão próximo nos anos sessenta, que eu "situava" na minha imaginação em tempos mais recônditos.
Quando tiver um tempo irei calcorrear o que resta destes caminhos, seguindo a sua sugestão... Tinha intenção de lhe dizer isto em comentário ao seu post mas tendo-se antecipado aqui vai o meu sincero obrigado.

Um abraço

João Xavier

Fausto disse...

Amigo Xávi

Aqui para nós! A construção do Estádio da Luz acarretou a destruição de uma das maiores e das mais belas quintas da região. E de enorme produção agrícola. Repare! No ano de 1944, com a 2ª Grande Guerra no auge, o meu pai vendeu ao Estado toda a produção de trigo da quinta daquele ano por um valor que eu mesmo, e agora, achei exagerado. Mas, não! 60 contos de reis! À época, era um bom pedaço de dinheiro. Mas, está confirmado. Isto, para se ter uma pálida ideia do tamanho e da excelente terra de semeadura da quinta.
A Cascata Monumental era qualquer coisa de muito belo. Possuo várias fotos da quinta e da cascata que, a seu tempo, irei publicar.
Brevemente, iremos efectuar o 2º passeio temático sobre as Azinhagas, isto é, percorrendo os caminhos antigos da Freguesia de Benfica, seguindo o itinerário descrito nas "Azinhagas, antigos caminhos da Freguesia de Benfica". Ver, também, “Castiço, o fabuloso boi de cobrição”; Arqueologia Industrial/Rural na Freguesia de Benfica”; Tabernas, tascas e casas de pasto na Freguesia de Benfica.

Saudações amigas e…mande sempre!

Fausto Castelhano

Xávi disse...

Amigo Fausto
Há quarenta anos ainda cortava caminho do antigo estádio da luz para o largo conde de bonfim por dentro das searas passando pelo campo de tiro no cimo do monte e passando numa vacaria onde aliás trabalhava o marido da minha porteira, o srº António, que nos vendia o leite que aí se produzia.
Vou estar atento ao 2º passeio temático e caso aceitem inscrições terei todo o prazer em participar.

Saudações amigas,

João Xavier