15/03/11

" Casa do Cavaleiro à Porta "


Eu enquanto muito jovem fazia algumas incursões aos fins de semana na Rua da Furnas, a um local que eu considerava sagrado, um local em Benfica que me fazia entrar na máquina do tempo, sonhar e voar como se fosse em direcção à terra do nunca, a do Peter Pan, onde os meninos não queriam crescer, e qui-ça se eu também o quereria crescer? Era uma autêntica viagem à Alice do País das Maravilhas, eu não era o coelho, hoje sou, sempre cheio de pressa e a correr para todo o lado em busca de coisa de nenhuma...
Saía de casa, esperava ansiosamente o autocarro carreira nr.º 15, ainda com tradicional côr verde, e ali esperava no largo do rato, lá ia eu contente, com uma angústia saudável, ansioso de tocar na campainha daquela cave em Benfica, a abertura era só ás 15:00h, mas ás vezes ás 14:00 já lá eu estava de calções e meias até ao joelho.
Rua das Furnas fez parte do meu crescimento, soldadinhos de chumbo pintados com grande esmero e precisão cirúrgica pelas mãos delicadas de Alberto Cutileiro (Pai), restaurador quase residente do museu de Marinha, e do filho também. Castelos, veículos militares da I e II guerra mundial, barcos em balsa, comboios Märklin, Fleischmann, Rocco, automóveis antigos, Corgie Toys, maquetas á escala 1:76, milhares de soldadinhos da Airfix desfilando em parada, aviões, capacetes, espingardas, bandeiras do tempo das invasões napoleónicas, faziam todos os que ali se deslocavam e reuniam momentos de verdadeiro dia santo como de domingo se tratasse.
Eu entrava, e não queria sair mais, gostava de ser invadido pelo leve e doce aroma a ''antigo'', as essências dos objectos misturavam-se reportando a sua história, o cuco e o pêndulo tranquilizante do relógio de parede eram como ''Snipper's'', eram os Xanax, e os Prosac's da altura, mas isentos de efeitos colaterais, rasgavam o silêncio sepulcral de uma das divisões do Centro de Coleccionadores Casa do Cavaleiro à Porta, transformada em Atelier de pintura e restauro de soldadinhos de chumbo, e das vastas serigrafias pintadas pelo mestre Alberto Cutileiro.
Recordo ainda como se fosse ontem um momento e que passo a descrever, o pintor e restaurador Alberto Cutileiro, numa da minhas infindáveis visitas ao Centro de Coleccionadores, olha para mim, e diz: Fernando, espera um pouco. Eu assim fiz, e Alberto Cutileiro aparece com um pincel, e uma pequena cartolina e em escassos 10 minutos pinta e faz o meu retrato/caricatura, tinha eu 18 anos, é uma das provas artísticas que guardo religiosamente de Alberto Cutileiro ( não confundir com o escultor Cutileiro, são de famílias diferentes .
A cave da Rua da Furnas, descobri um santuário, catraio ou talvez nem tanto, 17 aninhos, pensando que a minha vida passaria só por ali, deus meu, tanta ingenuidade junta em tão pouca massa corporal. Deliciava-me a ver as obras dos mais velhos, carros de combate da II guerra mundial pintados à escala 1:35, autênticas réplicas do que foram na realidade, ficava quase em verdadeiro estado catatonito ao ver aquelas miniaturas, construídas com muito engenho, arte e sabedoria, saindo dali porém com uma certeza, de que as minhas mãos também fariam e construiriam miniaturas, pois passados alguns tempos o Centro de Coleccionadores convidou-me para participar várias vezes em concursos de miniaturas militares, muitas delas ainda guardadas e conservadas como de um verdadeiro território sagrado de Prishtina se tratasse.


texto de Fernando Pinto Barbosa
foto de caricatura de Alberto Cutileiro, cedida gentilmente por Fernando Pinto Barbosa

7 comentários:

J. disse...

belissimo texto de recordações, por momentos estava ali mesmo, dentro da loja... e que belo retrato! :)

fernando, muito bem-vindo ao blog dos mercadores de afectos de benfica (inspiradora definição da t.)

um abraço

Fernando disse...

Muito obrigado J.
Fico contente que tivesse gostado.
O nosso passado é o nosso presente, as nossas memórias e momentos vividos em criança reforçam e fazem-nos despertar uma infinita saudade de os reviver outra vez.

Abraço

Carlos Caria disse...

Ola Fernando,
Obrigado pela narrativa e pela partilha destes pequenos grandes momentos da nossa vida.
Quase que me veio uma lágrima ao canto do olho pela memória e saudade tão grande homem que foi Alberto Cutileiro (pai), pois com o filho pouco privei. Eram deliciosos os encontros e infindáveis as conversas, um manalcial de saber e arte como artista e de vida como homem.
Saudades só nós as temos
Abraço amziade
Carlos Caria

Fernando disse...

Carlos,

Obrigado pelo feedback. É verdade, e como cantava Victor Espadinha :-))), recordar é viver. Preservo ainda as miniaturas que fiz até aos 20 anos, eficazmente avaliadas pelos olhos penetrantes dos Cutileiros, Pai e Filho, e quando ocasionalmente as relembro, associo o aroma daquela cave, contráriamente ao usual em caves, o aroma doce, macio, a especiaria invadia todo o prédio desde o momento que Cutileiro abria a porta.

Abraço e muito obrigado
Fernando

Ka disse...

Todos os dias passo por esta "loja" e divirto-me a olhar para a montra/janela, onde deambulam bonecos, brinquedos e objectos que se perderam nas memórias do tempo.

Não sabia a história, apenas conhecia a montra da loja.

Obrigada pela partilha. :)

Guidinha Pinto disse...

Não conhecia a sua «estória» mas esta loja também faz parte da minha adolescência. Morei na Raul Carapinha :). E sim, recordar é mesmo viver, outra vez, as vezes que quisermos. A memória é uma coisa fantástica.
Fique bem.

Z. disse...

Visitei algumas vezes esta cave, nos anos de 1975 (tinha 16 anos) até 79/80 (salvo erro). Lá comprei modelos e, especialmente, livros em inglês, numa altura em que obras de referência de qualidade sobre História Bélica eram difíceis de encontrar em Lisboa. Ainda tenho dois dos livros da Osprey lá adquiridos.

Recordo vividamente tanto pai (uma enciclopédia, um Senhor e uma simpatia), quanto filho (aqueles óculos de armação negra, espessa...). Nunca mais lá voltei... Bons tempos. =)