23/06/10

O laçarote na cabeça

















Nunca sabemos, ao certo, qual a primeira recordação consciente da nossa infância.
Sei que nasci e vivi em Belém, onde o meu pai tinha uma Pharmácia (com Ph). Também me contaram que a Amália Rodrigues e a irmã, Celeste, iam lá bastantes vezes - havia um empregado bonitinho...
Mas a minha primeira recordação é do tempo em que os meus pais decidiram ir viver comigo e com o meu irmão, um ano mais velho, para a Avenida Gomes Pereira, em Bem-Fica. Parecia-me enorme, nessa época, nos finais dos anos 40.
Hoje em dia, já ninguém reconhece a mesma Avenida como era mas, por estranho que pareça ou por coincidência - há quem diga que "não há coincidências" - a vivenda, em cujo rés-do-chão fomos viver, até há pouco tempo era a única casinha baixinha que se encontrava de pé ( ainda não havia sofrido a sofreguidão dos edifícios de andares que acabaram com a magia da bela Avenida) e ficava situada do lado direito, mais ou menos a meio,  de quem sobe.
A razão dessa vida nova foi o facto de o meu pai ter sido convidado para Farmacêutico dos Laboratórios Atral, que ainda existem, hoje em dia, mas não ali, que fora o início. Também recordo que a primeira sede do Clube Benfica era nessa Avenida, mas do lado oposto à nossa casa, assim como a célebre Fábrica Simões - de malhas, se não estou em erro.
Era uma Avenida imponente com árvores frondosas, quase toda ladeada de vivendas com grandes jardins, eu diria antes grandes quintais, porque a maior área ficava na parte de trás das ditas vivendas ou chalêts.
O meu irmão, que tinha 4 anos, passou a frequentar o Colégio da D. Isabel Aboim, que ficava situado, igualmente numa vivenda imponente, mais acima, do lado oposto à nossa casa e já perto da Estação de Caminho de Ferro.
E interessante verificar que temos quase sempre uma memória especialmente afectiva em relação a quem nos ensinou as primeiras letras.
Pois a D. Isabel, a ideia que tenho dela, é a de uma senhora alta, de carrapito, com um camafeu bem colocado a fechar a golinha alta do seu vestido bem abotoado até ao pescoço. Impunha respeito só pelo aspecto austero! Mas tinha uma pequena fraqueza que eu, já muito observadora, acabei por descobrir.
Tenho de fazer um àparte para fazer: com três anos, fui também frequentar esse colégio, onde o meu irmão já andava porque, nem sei como, aprendera a ler, ao presenciar o meu irmão a estudar e a fazer os trabalhos de casa. A minha mãe contava que eu costumava corrigí-lo, por vezes, e havia sido eu, com apenas três aninhos, que insistira em ir para o colégio - tão pequenina como sempre fui!
Nessa época não havia Jardins de Infância e ia-se, geralmente, iniciar a Escola Primária aos cinco/seis anos.
Querem saber qual era o fraquinho da D. Isabel? O marido que, segundo constava, era 12 anos mais novo! Um grande Amor!
Só me lembro de ver o meu irmão como aluno, pois só via meninas. Eu continuei lá até à quarta classe e o meu irmão foi para o Colégio S. João de Deus, na Avenida Alvares Cabral, em Lisboa. O meu pai levava-o de carro.
Como era a vida num colégio de meninas nos finais dos anos 40 e início dos 50? Para além de cadernos e cadernos de caligrafia de duas linhas, cheios de palavras e frases. para se ter um letra bonita, havia as longas aulas sonolentas devido à lenga-lenga da Tabuada: 2x1=2, 2x2=4... e assim por diante - de somar, de diminuir, de multiplicar, de dividir... Era um nunca mais acabar de canções de embalar. Mas o engraçado era que até gostávamos de nos sentirmos, como se estivéssemos a navegar num barquinho a remos, pois as cabecinhas e os corpinhos das meninas também faziam uma espécie de bailado acompanhando a cadência dessas "mornas"!
Eu tive mais sorte do que outras coleguinhas, pois comecei a aprender a tocar piano, lá no colégio, com a D. Cândida que era amiga da D. Isabel e, com quatro anos, fiz a surpresa aos meus pais de tocar uma pequena peça inteira.
Da parte da tarde as meninas, quando estava bom tempo, levavam cadeirinhas para o jardim do colégio... e foi assim que aprendi a bordar.
Com quatro aninhos já sabia ler, escrever, contar, tocar piano e bordar! Uma verdadeira prenda!
Não havia lojas na Avenida Gomes Pereira. Lembro-me de que havia uma espécie de mercearia tradicional  já na esquina para a Estrada de Bem-Fica e a coisa melhor que me podiam dar eram os célebres gatinhos de chocolate embrulhados em papel de prata. E até me lembro de um episódio insólito devido à minha já adição ao chocolate, na altura só na forma de gatinhos.
A minha mãe tinha-me levado ao dentista - num primeiro andar de um pequeno prédio de dois andares com uma escada tenebrosa de madeira, na estrada de Bem-Fica, para ele me tirar um dente de leite que estava quase a cair. Mas quem disse que eu deixava tirar o dentinho? Nem pensar! O Dentista ouviu palavrões, que a minha mãe nem sonhava que eu alguma vez os conhecesse e muito menos os dissesse. Lembro-me bem de lhe dizer: "Sua besta!" em altos gritos. Imaginem uma menina tão bem-educada e sossegadinha a dizer coisas destas a um adulto!!!
Mas quem ganhou fui eu! O dente é que não ficou lá! Voltou comigo, novamente, e ainda recebi um prémio, pois a minha mãe lá me comprou mais um gatinho desses e, para meu espanto, ao trincá-lo, solta-se o dente. QUE ALIVIO para todos e, especialmente, para mim, está claro!
E fico por aqui, com a sensação de ter voltado a ter quatro anos e um grande laçarote na cabeça.


Milinha e a sua estória de menina na Avenida Gomes Pereira, em Bem-Fica


Um belíssimo  e terno depoimento sobre Bem Fica da autoria de Emília Donas-Bôto. 
Aguardamos por mais memórias tão bonitas.

2 comentários:

J. disse...

belissimo texto de memorias, emilia! ;)

Xávi disse...

Gostei muito de ler o texto da Emília, que me fez viajar por uma Avenida Gomes Pereira de outros tempos guiado por uma menina de quatro anos com um laçarote na cabeça. Parabéns!