21/06/10

Qual escuro?














Fui morar para Benfica em 1958, vindo da Rua António Patrício, em Alvalade, onde nascera.
O meu pai e a minha mãe trabalhavam,  e quando não vínhamos para Benfica de carro, com o meu pai, vínhamos no 46 – que era um autocarro de dois andares inglês, de marca AEG, com caixa de velocidades semi-automática colocada numa caixinha junto ao volante. Os motores faziam um chinfrim do caraças, os escapes lançavam uma fumarada negra e malcheirosa que subia a um terceiro andar e as montras abanavam todas.
A minha viagem preferida era de pé em frente à porta de ar comprimido, junto à janelinha que dava para a cabina do motorista, de onde vinha o caminho todo a observá-lo com atenção – a torcer o pesado volante, a criticar os carros que não andavam, enquanto que com um estranho jogo de pés, ia acelerando ou travando, chiando pela cidade fora.
Naqueles primeiros anos, o 46 ia das PORTAS DE BENFICA aos RESTAURADORES – deixava-se ficar a descansar à porta do Palladium, com o motor desligado e o motorista cá fora a fumar um cigarro na conversa com o pica-bilhetes. Sim, porque os autocarros da Carris tinham dois colaboradores em cada carro – um que conduzia a máquina e um outro que vendia os bilhetes, cujo preço variava consoante as distâncias das viagens – apelidadas de zonas. Ambos usavam gravata e um chapéu de pala, tal como os polícias, os fiscais da CML, os varredores, os taxistas e os ardinas. Os da Carris (embora nem todos), no Verão, usavam uns casacos mais leves, de cor beije.
Em Benfica, quem ia para o Bairro de Santa Cruz, ou saía do 46 na paragem da Igreja (para irem para o Bairro de “cima”), ou junto aos antigos Correios (quem ia para o Bairro de “baixo”). No meu caso, saíamos nesta última e seguíamos pela Estrada da A-da-Maia, onde havia prédios de um lado e outro e que acabava na loja manhosa do “pitrolino, e depois entrávamos num descampado com um carreiro a meio: era a futura João Frederico Luduvice e o Jardim da Casquilha. Atravessávamos um descampado imenso até nossa casa, situada sensivelmente a meio do primeiro quarteirão do bairro, na rua da Casquilha. Esta, era a rua principal do bairro, pois era a mais larga, e detinha o nome da quinta que dera lugar ao novo casario – a Quinta da Casquilha.
A quinta ficara reduzida aos terrenos da futura JFL, que ainda não tinha quaisquer prédios, e mantinha umas poucas vacas, ovelhas e galinhas – e um único trabalhador: o Sr. Alberto. Este, já quarentão, era um gajo porreiro, e fazia uns cobres a vender leite fresco, ovos e galinhas – que todos os dias gastava na tasca do Sr. Aníbal – que nos vendia rebuçados com bonecos da bola e veio a morrer dentro de um poço.
Mas o que agora importa é que quando a noite caía cedo, no Inverno, como não havia candeeiros, e tinha ido a “Lisboa” ou fazer algum recado à mercearia do Sr. António, vinha muitas vezes às escuras desde o “pitrolino” até casa.
Era um drama.
Não havia sacos de plástico, e carregado desajeitadamente com um ou dois embrulhos, metia pela zona desértica de gente e com lama originada pela chuva, para chegar mais depressa a casa, fugindo de ser raptado, assaltado, roubado, espoliado, agredido, esfaqueado ou, simplesmente, perseguido. Até aos 14 anos andávamos, habitualmente, de botas (no meu caso, cardadas), e eu metia pressa nas pernas perras pelo carreiro fora mais rápido que o Obiquela, e só quando passava o portão do quintal e o fechava, é que ficava encostado a ele a arfar, com os óculos embaciados e limpando o suor da testa com a manga da camisa. Só então sacudia lentamente a lama acumulada nas solas. Nunca sabia o que por ali me perseguia: um bicho danado, um carniceiro louco com uma faca mal afiada, um malfeitor recém-evadido, ou um carrasco sedento fugido de um filme da televisão. Nunca os encontrei, mas sempre os senti atrás de mim pelo carreiro acima.
Quando a minha mãe finalmente abria a porta, ficava a olhar surpreendida o carreiro lá longe na escuridão, e em voz sussurrante perguntava-se:
-Não tiveste medo do escuro?
E eu respondia prontamente indignado:
-Qual escuro?

Texto de Carlos Pessoa Domingos

2 comentários:

J. disse...

maravilhoso texto! :)

carlos pessoa domingues, agora não pode ficar por aqui,queremos mais assim ! ;)

um abraço

Miguel Gil disse...

É tão engraçado como me identifico com todas estas situações, aqui tão bem narradas pelo Carlos Pessoa Domingues, sobretudo com a do escuro no descampado depois de ir fazer um recado à mãe.
Também fui para o bairro em 58 mas para o de cima, nessa altura para a Rua do Parque.
Carlos Pessoa Domingues, belo texto. Como a J. diz, queremos mais destes, força!