07/07/10

Surdo, maluco e tropa




- Queixa-se de alguma coisa? Perguntou aquela bata branca bem engomada, com galões nos ombros, que deixava entrever os colarinhos de uma farda verde, da camisa caqui clara e a gravata também verde.
Sem resposta, volta a questionar, aumentando um pouco o volume da voz:
- Queixa-se de alguma coisa?
Tinha chegado a minha vez. Nu, sem frio ou pudor, esperei que retirasse os olhos do formulário que não parava de preencher.
Levanta lentamente a cabeça de rosto inexpressivo e cabelo bem curtinho, olha para mim e repete em tom agressivo, prolongando o tempo de pausa entre cada palavra:
- Queixa-se de alguma coisa.
- Sou surdo! Sou surdo do ouvido esquerdo. Nunca ouvi nada do lado esquerdo, desde criança.
Os olhos voltaram ao formulário. Mais cruzes e palavras escritas:
- Tome. Está incorporado. Tem de se apresentar no Hospital da Estrela, ao oficial de dia, amanhã pelas oito, sem falta. Vai fazer exames. Vamos lá ver se não está a mentir. Siga.
Seguiu-se um mês completo de muitos exames aos ouvidos, audiogramas e outros similares. No fim de conferirem e compararem tantos exames concluíram que era realmente surdo. Fiz um mês de tropa. A junta médica militar carimbou inapto para o serviço militar. Tanto que o queria ser. Inapto por opção. Mesmo que não fosse surdo, já tinha decidido, inapto ou salto, guerra colonial não.
Em Benfica, como em todos os outros bairros de cidade, nas aldeias ou vilas de Portugal, há sempre um indivíduo que, pelas suas atitudes bizarras, pouco comuns ou ditas anormais, é conhecido como o maluco de.
Quando conheci o Manuel Lisboa tinha talvez uns catorze ou quinze anos. O Manuel Lisboa era talvez dez anos mais velho, era apelidado de o maluco de Benfica. De facto tinha alguns comportamentos anti-sociais: Partia montras de lojas à pedrada; colocava-se no meio da Estrada de Benfica provocando a paragem demorada do trânsito; verbalizava impropérios a quem passava; pedia cigarros e dinheiro. Situações que manifestamente o divertiam.
Contudo o seu aspecto não se aproximava em nada de um indigente. Vestia-se até com gosto, a roupa mudada e lavada, mantinha o cabelo cortado e penteado, barba feita e a postura física de quem se alimenta bem e sabe cuidar de si.
Sempre que se dirigia aos meus irmãos ou a mim, para nos pedir tabaco, fazia-o com gentileza e usando uma linguagem correcta. Não nos pedia dinheiro porque, sabes lá como, sabia que não o tínhamos. Diversas vezes, na sequência de nos cravar tabaco, entabulava conversa connosco, mostrando-se conhecedor da nossa cultura, sobretudo dos escritores e poetas contemporâneos, declamava de memória frase ou versos das suas obras, em coerência com o evoluir da conversa.
Este ‘maluco’ cativava-nos.
Um dia, no meio de uma dessas conversa, voltou-se para mim e disse:
- Tu és surdo! És surdo do ouvido esquerdo. Disse-o com tanta certeza que estranhei o propósito.
- Sim, sou! Como é que sabes? As pessoas não notam nem acreditam que o sou!
- É simples, basta olhar para ti! Quando conversas inclinas um pouco a cabeça para a esquerda e procuras sempre posicionares-te do lado que ouves.
Um pouco mais tarde, vim a saber que o Manuel Lisboa era um brilhante aluno de medicina que, no terceiro ano do curso, se juntou às lutas estudantis e foi coercivamente incorporado na tropa.
Rebentou uma granada e zás… pirou.


Foto retirada em static.publico.pt/imagens

2 comentários:

J. disse...

ha uns quantos malucos em benfica, agora menos parece-me. lembro-me de um muito jovem que nos cravava tabaco e dinheiro e cafés... gostava muito de poesia e de vez em quando recitava herberto helder...

não sei o que sera feito dele...

belo texto miguel! ;)

Miguel Gil disse...

Obrigado J.
J., escreveste que parece que há menos malucos em Benfica, claro eu já lá não morro! :)))