03/09/10
Vizinhos (ou Dona Lurdes)
Uma das coisas que me fez vir viver para este sítio foi o facto do meu prédio não ser demasiado alto. Apenas três andares e assim todos os vizinhos se conhecem. No início disseram-nos: "é como se fossemos todos uma família" e passados quatro anos constato que há alguma razão na afirmação que, na altura, me pareceu exagerada.
O rés-do-chão com um casal novo de um lado e do outro, uns avós onde, por vezes, os netos brincam no pátio. No 1º andar, o senhor que é taxista com a mulher e duas filhas (que entretanto já saíram de casa) e a vizinha de 90 anos que foi viver com o filho. No 2º andar vive a personagem mais caricata do prédio: uma senhora que já está muito surda, mas que é muito faladora e divertida. Quando nos vê assusta-se sempre, porque não nos ouve chegar e só já nos apanha mesmo ao pé dela: "Ai que susto!" e continua: "Assustei-a não foi?" (acha que ela própria nos assusta com o susto dela!).
Também no 2º andar, mesmo por baixo de nós, a Dona Lurdes vive com o marido que já não pode sair. Têm um relógio que dá as horas, as meias-horas e os quartos e confesso que me foi difícil habituar ao princípio. Embora não seja a administradora é a Dona Lurdes que toma conta das coisas mais práticas do prédio: a senhora das escadas, o limpa-chaminés, algumas da contas necessárias. Quando chego a casa ela está à janela e, por vezes, como vê que venho carregada com o bebé e com sacos, abre-me a porta lá em baixo. Outras vezes ouve-nos subir e espera à porta para ver o Manuel e perguntar se tudo vai bem. Diz sempre: "É muito bonito!". Um dia confessou-me que tinha engravidado por duas vezes, mas os bebés nunca chegaram a nascer. Ela e a senhora que ouve mal (também é Lurdes) são chegadas e têm grandes conversas (ou monólogos) no prédio. Sei que, de manhã, alguém deixa o pão à porta da Dona Lurdes e que o Sr. Alexandrino, da mercearia, lhe vem também trazer as compras. É uma vizinha simpática.
São todos vizinhos simpáticos!
Ontem, quando vinha a chegar do emprego a Dona Lurdes não estava à janela. Quando dei o primeiro passo para entrar no prédio vinham os senhores da funerária a descer com um corpo. Recuei, subi a rua uns metros e fiquei à porta do café. Pensei que tinha sido o marido que já estava doente, mas quando saíram reparei que o corpo era demasiado pequeno. "Tão pequenina, coitadinha!", comentou alguém. Perguntei ao sr. Nunes, do café, se tinha sido a Dona Lurdes. Ele disse que sim.
Durante a noite, fui imensas vezes à janela espreitar para baixo: às vezes via-a estender a roupa ou apanhar fresco. Hoje não havia pão à porta. O relógio já não bate.
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6 comentários:
Se não fosse tão triste ver alguém partir, ainda mais um vizinho que nos é chegado, seria um texto maravilhoso.
Ainda bem que existem vizinhos que dão pela falta das pessoas, se não este mundo era um pasmo.
Obrigada, Carlos! Confesso que hesitei em escrever o texto, precisamente por se tratar de um assunto triste. Mas Benfica também é feito destas pessoas: as que estão, as que já foram, as que virão.
Marta G., gostei bastante de ler o teu texto e também gostei da frase no comentário: "Mas Benfica também é feito destas pessoas: as que estão, as que já foram, as que virão", mas considero que as 'Donas Lurdes', as que habitam simpaticamente o nosso quotidiano, não são 'das que já foram' mas sim 'das que ficam'.
marta, gostei tanto deste post...
ha pessoas que nunca poderão ser substituidas por empresas de condominio... até porque não ha empresas de condominio que nos abram a porta quando vimos carregados e que nos digam que temos filhos bonitos :)...
concordo inteiramente com o miguel a dona lurdes pode ja não estar em vida mas fara sempre parte das pessoas que ficam... no meu prédio tenho a dona maria josé que tem o papel da dona lurdes, é ela que limpa a escada, que recolhe o lixo, que paga as rendas, que abre a porta à publicidade...
Acho que todos temos ou tivemos uma "Dona Lurdes". No meu caso chamava-se "Dona Rosa".
Ficam para sempre, não é?
Navegando no blog descobri os vossos Posts sobre a Villa Grandela. Fiquei emocionada, foi o sítio onde cresci....
A estória é muito comovente e sei do que fala. Já partiram uns tantos e sentimos a ausência.
Ainda tenho no «meu» prédio as «donas» que se cumprimentam entre si e que passaram às gerações seguintes que vizinhos são os nossos parentes mais próximos.
Também é minha convicção que viver num prédio-condomínio onde todos se cumprimentem, recebam com um sorriso os novos condóminos e estejam atentos uns aos outros, é um bem precioso nos dias de hoje.
Tenho essa sorte.
Saudações cordeais.
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